Bienal, um espaço de resistência
A XXII Bienal da Festa do Avante! foi transportada para este ano devido às fortes restrições que a epidemia impôs no ano transacto. Epidemia que abriu o armário onde estavam os vários esqueletos da cultura, derivados das áreas culturais estarem entregues ao mercado. Epidemia que expôs brutalmente a fragilidade económica dos sectores culturais, depois de anos em que se trombeteava o seu crescimento nos PIB, ainda que com enxertos espúriosi e a endémica precariedade do mercado de trabalho.
Só pode ficar estupefacto quem não tenha estado atento ao que se desenhava desde os anos 60, quando a economia da cultura começou a ser campo de experimentação para novos conceitos económicos por ser terreno em que a formação do valor é específica, mais volátil, mais dependente de factores não materiais, por gerar fluxos variáveis de receitas e de empregos, por fomentar uma economia de incerteza que implica a revisão de pressupostos de racionalidade. No mundo do trabalho, por ser um laboratório da flexibilização do trabalho, por se tratar de trabalho qualificado onde o trabalho independente, a intermitência do emprego sem custos de angariação nem de despedimento, a generalização da fragmentação do salário e a irregularidade da actividade franqueiam caminhos para se estudar e experimentar como abrir brechas nos direitos dos trabalhadores.ii
A sujeição do universo cultural às leis do mercado acaba por ser aceite por alguns teóricos pós-modernos das artes e das letras contemporâneas que consideram a precariedade uma «característica distintiva de parte das práticas artísticas e das obras, tanto do ponto de vista da sua ontologia, como de sua recepção», posição típica de quem até aparentemente se pode opor politicamente ao neoliberalismo mas é seu cúmplice por não perceber que a produção dos bens culturais é um trabalho como qualquer outro e que só o trabalho é fonte da riqueza, tanto do trabalho como do capital, medida pela quantidade de trabalho que foi necessário para a criar, porque tudo o que os humanos têm usado na sua história para criar riqueza, dos machados de pedra às obras de arte, das sementeiras aos computadores, foi sempre e em todos os seus momentos criado pelo trabalho humano.
A cultura sujeita às leis do mercado é uma cultura de impacto máximo e obsolescência imediata. Terry Eagleton observa causticamente, que é uma cultura bastarda: «pela primeira vez em dois séculos não há qualquer poeta, dramaturgo ou romancista britânico que questione os fundamentos do modo de vida ocidental», observação extensível universalmente a todas as artes e letras. Desligadas da vida e das lutas para a transformar quando procuram travestir essa factualidade enveredam no radicalismo pequeno-burguês de mimetismo proletário das camadas burguesas decadentes.iii
Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo, do inconsequente entretenimento que bordelizou a cultura com o mercado a extrair benefícios máximos de um bullying das indústrias culturais e criativas que explora o empobrecimento moral e intelectual da sociedade.
Neste estado de sítio, em que as artes visuais são um nicho do mercado de objectos de luxo, mais que as considerações estéticas que se possam fazer sobre XXII Bienal o que se deve sublinhar é que é um espaço de resistência à margem dos circuitos dominantes em que a arte contemporânea revela toda a sua decadência numa sociedade em que quase deixa de haver lugar para a criação artística e onde tudo se normaliza num espectáculo contínuo e generalizado de mundanidades. Assim se deve manter como parte integrante do que desde a primeira edição caracteriza a actividade cultural da Festa do Avante!.
iVeja-se os sectores inscritos na Europa Criativa em que coexiste a publicidade com as artes visuais, o cinema onde não se distinguem os videojogos, os filmes pornográficos dos independentes e de autor, na área das publicações a amálgama é total, etc.
iiLeia-se o estudo encomendado em 2013 pela Secretaria de Estado da Cultura à sociedade de consultores Augusto Mateus e Associados, intitulado A Cultura e a Criatividade na Internacionalização da Economia Portuguesa, Plano de Acção Regional de Lisboa 2014-2020. Na matriz swot, no campo das oportunidades lê-se: «Emergência e crescimento sustentado de uma economia do conhecimento suportada na cultura, onde o segmento das indústrias culturais e criativas desempenha um papel preponderante (cluster centrado nas indústrias criativas)»; «Aproveitamento de elementos históricos e culturais para a criação de marcas (Fado, Pessoa, Oceanos,…)»; Economia de royalties, a lógica coca-cola aplicada aos poemas de Fernando Pessoa e seus heterónimos explorados enquanto marcas para um mercado em crescimento gerado pelas oportunidades do «turismo cultural, em especial o segmento do turismo criativo com foco no turista que procura experiências culturais genuínas e ser agente/criador de lugar/destino». A coroar estas pérolas a mais refulgente «Desemprego como Oportunidade».
iiiA curiosidade dessas obras é que normalmente os seus propósitos são incompreensíveis mas sempre minuciosamente explicados por textos, tão mais inteligentes quanto mais indigentes são as obras, dos curadores, comissários, etc., que as promovem. É o baixo clero pós-moderno que transmite o gosto do poder dominante e é garante do valor de mercado das obras de arte, em que esses intermediários culturais são o motor real, estando sempre entre duas actividades promocionais onde a arte e a cultura são sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades.