Paula Oliveira ao Avante!

«Os versos de Saramago falaram de música comigo»

Com um percurso artístico ligado ao jazz e à musica portuguesa, Paula Oliveira apresenta na Festa um espectáculo que tem por base um projecto com composições suas a partir de poemas de José Saramago. Flores de Saramago assim se chama este trabalho inspirado na obra poética do nosso Nobel da Literatura. Os seus versos, confessa, atraíram-na e conduziram o processo de composição, como que indicando o «ritmo e as melodias, num processo muito orgânico».

É a felicidade desse encontro que será partilhada por quantos a ouvirem na Festa do Avante!.

Como é que em 2018 surgiu o disco Canções Possíveis, onde a Paula Oliveira compôs e cantou música para poemas de José Saramago? Foi uma ideia sua que a Fundação José Saramago depois apadrinhou e editou ou foi uma encomenda da própria Fundação?

Canções Possíveis e Flores de Saramago, são o mesmo projecto, uma ideia minha de edição de autor, que a Fundação Saramago apadrinhou, com apoio da SPA. Acaba de sair o livro de partituras com o apoio de programa Garantir Cultura. De início era para se chamar Canções Possíveis, após constatar que já existia um outro projecto mais antigo como um nome parecido As Canções Possíveis do cantautor Manuel Freire e igualmente com poesia de José Saramago, optei por alterar o título para Flores de Saramago. Encontrei ligação com a planta saramago, uma erva daninha simples e cuja flor é pequenina e branca e que nos remete para o universo da natureza que eu tanto gosto e me identifico. As canções que compus são simples como pequenas flores. Pode ver-se no primeiro vídeo clip que realizamos, com a canção à capela Diz Tu Por mim Silêncio em que o foco é o trabalho de mãos na produção de uma peça em cerâmica ( sou uma ceramista amadora), onde aplico um decalque de uma flor de saramago que desenhei.

 

Em qualquer dos casos, como é que a Paula criou a relação especial com a obra de José Saramago (e em particular com os poemas) que a encorajou a fazer esta interpretação musical?

Foi uma espécie de encontro inesperado, eu procurava poesia para o meu próximo projecto, e cruzei-me com o livro de poesia poemas possíveis. De imediato senti uma forte ligação, por exemplo com o poema Taxidermia ou Poeticamente Hipócrita cujos verso estão recheados de significado, e que nos remetem para a hipocrisia do mundo em que vivemos. Também os poemas Romeu a Juliet e Julieta a Romeu, são uma bela reflexão, que através do mote da obra de Shakespeare, sobre o amor proibido e a falta de liberdade e no ser-se. Não conheço a obra de Saramago em profundidade, nem nada que se pareça, mas a leitura dos versos atraiu-me e deixei levar-me numa espécie de caminho que parecia estar definido, e a composição foi acontecendo de forma fluida como se os versos me indicassem o ritmo e as melodias, num processo muito orgânico. O livro foi escrito no ano em que nasci, isso faz-me sorrir.

Aproximava-se a comemoração dos 20 anos do nosso prémio Nobel da Literatura, esse facto acrescentou motivação para escrever estas canções e assim homenagear o autor.

 

A seguir a Canções Possíveis editou Flores de Saramago, que supomos ser o suporte do espectáculo que vai apresentar na Festa do Avante!. Que diferenças e semelhanças separam os dois discos?

Como disse anteriormente, Canções possíveis e Flores de Saramago são o mesmo projecto. Sim é esse repertório que vou apresentar na Festa do Avante, e talvez introduza um ou outro tema de trabalhos anteriores. Já gravei canções do Zeca Afonso e Sérgio Godinho, compositores que sempre me inspiraram e por isso ajudam a estabelecer uma ligação entre o público.

A maioria dos poemas do Nobel da Literatura que a Paula Oliveira transformou em canções não foram pensadas para essa funcionalidade. A estrutura e o ritmo dos versos de Saramago foram facilmente adaptáveis para construir melodias ou encontrou dificuldades para obter um bom resultado?

Acho que esta resposta está dada anteriormente, o processo foi organizado e fluido, mas nenhum processo construtivo é igual. Se o resultado é bom, não sou eu que o digo. Gostei muito de o ter realizado e só isso me motiva para continuar a compor. O melhor da composição é a descoberta, a liberdade nas escolhas, o prazer de nos deixarmos levar, mesmo que isso nos angustie por vezes.

 

Quase todos os poemas conhecidos de José Saramago foram escritos antes da queda do fascismo português – o livro Os Poemas Possíveis é de 1966 e o Provavelmente Alegria é de 1970. Aquilo que Saramago diz nesses poemas – e em particular aqueles que a Paula Oliveira canta – têm uma mensagem adequada para o século XXI?

Claro que sim, vivemos em pleno século XXI onde acontecem “coisas” agora, o caminho para a conquista da liberdade ainda mal começou e tem de continuar para sempre. A mensagem mais importante que encontro nestes versos é a de um grande apelo à reflexão, a nível individual do foro mais intimo que é onde tudo começa…

 

A faceta poética de Saramago é menos conhecida que a de romancista. Como leitora sente que o Saramago romancista é muito diferente do Saramago poeta, ou vislumbra a mesma personalidade artística por detrás de formatos tão diferentes?

Não tenho a mínima competência para qualquer análise critica/artística ao prémio Nobel da Literatura. Ele escreveu um dia: «A minha poesia é uma poesia de segunda ou terceira classe, não vale a pena teimar. Não tive ilusões, é o que é, limpa, honesta e em algum momento terá sido algo mais do que isso mas, enfim, não vou ficar na História como poeta.»

Só sei que os seus versos falaram de música comigo, encontrei afinidade, fiquei feliz por essa proximidade.

Confesso que a leitura de outras obras de Saramago em alguns momentos me foi particularmente difícil, e até desisti em alguns casos, mas por exemplo, o Homem Duplicado ou Intermitências da Morte tive enorme prazer em ler.

 

Uma parte do valor do seu trabalho com a obra de José Saramago está no simples facto de, ao cantá-lo, estar a divulgá-lo. Já faz isso há bastantes anos. Fê-lo só em Portugal ou também teve oportunidade de o fazer no estrangeiro? Como foi a receção nesses locais?

A primeira vez que comecei a cantar este repertório, foi ainda em estado embrionário, teve início na sede do Partido Comunista Português a propósito da data de comemoração da chegada de José Saramago a Portugal quando recebeu o Nobel da literatura, e pelo que sei, foi ali o primeiro lugar onde foi celebrar a sua conquista. Depois em alguns teatros bibliotecas e na Fundação José Saramago.

Desde que foi possível o recomeço das actividades artísticas, tenho vindo a realizar algumas apresentações em Portugal e agora, já editado, espero continuar. Em Setembro de 2021, foi gravado para a RTP 2 o nosso concerto no festival de jazz da Figueira da Foz, esse concerto já foi transmitido e penso que ainda está disponível em streaming. A reacção nos locais julgo ter sido muito boa, com dois encores não me posso queixar.

No estrangeiro ainda não tive oportunidade, quando me preparava para a primeira apresentação, uma tour na Suíça em março de 2019, a pandemia parou tudo… Quando se pensava no formato de edição, surgiu a ideia de fazer um livro de partituras com Qr code de acesso ao áudio de distribuição digital. Para este formato, escolhi uma escrita musical que tornasse mais abrangente o público alvo tal como se fez no jazz com real-books e os standards norte-americanos, permitindo fácil acesso à composição e arranjos para todo o tipo de músicos profissionais ou amadores.

 

A Festa do Avante! é um sítio especial para cantar Saramago?

Pergunta de retórica… claro que sim, mas para mim a Festa do Avante é um sítio especial, só isso basta. Tenho o meu pequeno percurso na Festa do Avante e que me deixou marcas, no palco principal. Cantei no coro com Sérgio Godinho e com Paulo de Carvalho, também com Orquestra de Laurent Filipe e Claus Nimark e até houve um ano em que abri o evento com o meu quinteto e o projecto Lisboa que Adormece, quando se homenageou Ary dos Santos. Viva a Festa do Avante!.

 

 



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