Ás voltas no País do amanhã
As Organizações do PCP na Festa
Quando olhamos para a Festa no topo da Quinta da Atalaia, fica na retina uma manta viva e colorida em permanente bulício. Por entre os retalhos, recantos e caminhos do terreno, forma-se uma quadrícula ímpar, interrompida aqui, ali e ainda mais além por manchas verdes que prometem abrigar quem procura sombra e descanso. Há meses que assim é, recordamos ao lembrar as milhares de faces percorridas quando a Festa em construção ainda não tinha dado lugar à Festa construída, esta que agora se ergue pulsando vida por entre alamedas abertas a braço militante, derramando sobre a Baia do Seixal a generosidade, o amor e a fraternidade colectivas.
Pensando assim, o espaço parece-nos exíguo, demasiado apertado para conter no interior dos seus limites físicos tamanho génio criativo, tamanha torrente de vontade concretizada, essa mesma que, projectada para durar três dias, perdura no tempo e na memória de quem a faz e visita deixando vontade de repetir e ampliar a experiência. A Festa que sendo nossa, dos comunistas, do seu Partido e do jornal que lhe dá o nome, confirma em cada ano que se reedita ser também a de centenas de milhares de pessoas, anónimas ou nem por isso.
Lembramos expressões de esforço, suspiros que contrariaram o cansaço, máquinas em manobras, entulho, ferramentas, latas de tinta, projectos e ideias que sempre aceitam mais um contributo quando ele vem de uma mão amiga. Mil e uma imagens de sorrisos militantes, conversas e frases de estímulo rasgam-nos um sorriso impossível de conter. Os olhos arregalam-se ávidos de ver uma obra que tem sempre um bocadinho de cada um de nós, e o orgulho de ali estar e pertencer enche-nos o peito de ânimo. Conseguimos! Há trinta anos lançámo-nos na materialização do sonho e desde então oferecemos aos trabalhadores e ao povo uma maqueta do futuro. Não que tenha que ter aquelas torres que despontam, ou os tectos em lona berrante, ou o lago em cujas margens gerações se enlaçam na fruição da paisagem. Nada disso. Tão simplesmente porque a Festa traz à tona o melhor que reside em cada um de nós e em todos quando estamos juntos. Faz-nos sentir próximos, mais dispostos a partilhar o que há e acresce-nos a convicção nas razões que nos devolverão um futuro de liberdade. Apenas porque na Festa do Avante! quem semeia sabe que os frutos que colher são seus e do povo que por esta hora se precipita pelas duas portas principais de acesso ao recinto da Festa.
Vamos embora que o sol bafeja um calor tórrido e a «Carvalhesa» ecoa já nos altifalantes dando início à viagem.
Xadrez de sabores, identidade, futuro e luta
A manhã ainda agora começou e a rua que dista a entrada da Medideira até ao Palco 25 de Abril já é um carreiro de gente. Logo serão uma moldura humana que parece compacta, irrequieta, tornando difícil circular de região em região. Adiante veremos.
Caras estremunhadas sobem e descem, ora em passos vagarosos de observador, ora em ritmo apressado. «Tenho que ir para o meu turno» - explica um camarada que na noite anterior encontrámos deitado na relva a ouvir os compassos do Maestro Lopes Graça. «Encontramo-nos logo no stand de Castelo Branco e Guarda. Trincamos qualquer coisa e bebemos tinto do Côa» - promete.
Um visitante acabado de chegar à Quinta da Atalaia franze a testa fazendo contas à distância. Em Castelo Branco e na Guarda? - parece pensar atordoado pela imensidão à sua frente. Mais tarde acabará por perceber que nesta reordenação de regiões, a Festa trocou as voltas ao mapa. De Lisboa ao Porto basta atravessar uma rua. Açores, Viseu e Santarém circundam a Emigração e olham cá do alto a réplica da Ponte 25 de Abril que dá as boas vindas a quem entra em Setúbal a partir da maior sala de espectáculos do País.
Entre Braga e o Alentejo todos os dias há Arraial, e outras reordenações no xadrez de organizações comunistas onde podemos encontrar sabores, cultura, artesanato, identidade local, propostas de futuro e retratos da luta popular que continuamente procura arrancar Portugal do atraso ao qual nos condenam os governos e as políticas de direita.
Olhamos para o programa da Festa antevendo o jantar. Com vinho do Côa vão bem os maranhos, mas se por essa altura o estômago já pesar, ficamos pela sopa beirã. Uma coisa de cada vez, por agora vamos ao pequeno almoço. Tu vais ao café, eu vou aqui ao lado, a Aveiro.
«O proletariado na sua luta pelo poder não tem outra arma senão a organização» é a frase que nos recebe em fundo vermelho no pavilhão de Aveiro. No interior, painéis alusivos à actividade dos eleitos do PCP no distrito, à VI Assembleia de Organização e ao amplo movimento de assembleias de base que então decorreram, aos 85 anos do Partido e ao protesto pela reabilitação da Linha do Vouga garantem que a consigna de Lénine está a ser levada a sério.
Sentados à sombra apercebemo-nos da diferença de temperatura. Enquanto comemos as tarefas militantes não sossegam. Pão-de-ló de Arouca, moliceiros de ovos moles e uma morcela doce para depois. «Compra já a senha para o Leitão da Bairrada e ficas com a barrigada completa». Rimos, bebemos café, fumámos um cigarro, miramos mais uma vez a exposição política em redor e decidimos descer.
Em Leiria ficamos uns minutos deslumbrados com o vidro da Marinha Grande. Um conjunto de copos com uma garrafa de cristal expostos no stand são trespassados pelos raios solares. Se tivesse ginja de Alcobaça o reflexo era outro. A decoração política destaca a acção dos jovens comunistas e foca a importância da actividade vidreira, mas não esquece a luta dos pescadores e dos agricultores do distrito, sinal de que também em Leiria se prossegue a intervenção do PCP em defesa do aparelho produtivo nacional.
Contornamos o espaço e avistamos uma casita com tecto de palha. Não há que enganar, chegámos à Madeira. A fila em frente da pequena estrutura vai quase a meio da estrada. Aproximamo-nos para ver quais os principais atractivos oferecidos pela organização aos visitantes da Festa. Espetada de carne de vaca em pau de louro com milho frito, poncha, um bolo de mel e um pé de cabra de Câmara de Lobos para digestivo era uma refeição de lamber os beiços. Se a Festa em vez de três dias fosse uma semana...
Nas paredes do restaurante, voltada para o recinto de jogos da Festa está a história da «Revolta do Leite». Enquanto alguns jovens praticam desporto – só de os ver correr com o calor que faz ficamos cansados – damos uma vista de olhos pelos painéis. Em Junho de 1936, depois do fascismo ter acoitado as pretensões dos senhores da terra e ter decretado o monopólio do sector leiteiro, o povo ilhéu levantou-se e nem a repressão brutal ou a censura travaram de imediato as greves, os assaltos às instituições públicas e às fábricas levados a cabo pelos madeirenses. O PCP esteve na organização e promoção da revolta, esclarece-se, e para o provar está a história de dois dirigentes do Partido e uma reprodução da primeira página do Avante! da época onde tudo está escrito, preto no branco. 70 anos depois, o povo já se revoltava de novo contra o garrote de um ditador que mais cedo que tarde terá os dias de boçalidade terminados na Região Autónoma. Há quem faça por isso na Madeira, partimos confiantes.
«Daqui vemos o Palco»
São onze e meia e a Festa deita gente pelas costuras. Os corpos apressam-se determinados que estão em cumprir o objectivo pensado, definido por alto ou a régua e esquadro com o programa na mão. Depende. Ele há quem venha em excursão promovida pelo colectivo e quem chegue à Festa por meios próprios e por isso dependa apenas da sua capacidade de resistência aos quilómetros percorridos.
Famílias e grupos inteiros arrumam-se em cachos esgrimindo argumentos e projectos para mais um dia. Ninguém quer perder pitada. Há os espectáculos – uns querem ver uma coisa, outros outra. «Este ano está mais gente. O que trazes nesse saco?». Chá de Gorreana, ananás e queijo de São Jorge, escutamos depois de nos aproximarmos curiosos. Estiveram no espaço dedicado à estrutura partidária dos Açores, está visto, e lá encontraram, para além das guloseimas características das nove pérolas atlânticas, a afirmação do partido e da actividade dos comunistas nas instituições e nos combates de massas, os projectos e propostas para o arquipélago.
O queimor na garganta pede água. Eu prefiro beber uma cervejinha, vamos para junto do Palco 25 de Abril, lá cada um mata a sede como lhe apetecer. Chegamos a Coimbra e no terreno em frente milhares de pessoas, sobretudo jovens, aproveitam a pausa matinal nos espectáculos para retemperar forças. Muitos outros dão largas à alegria, à liberdade de se moverem por um espaço imenso sem constrangimentos, sem complexos, genuínos, reconhecendo-se na mesma condição dos demais que os acompanham ou dos muitos outros que consigo partilham três dias de razões cheias de futuro. Isto também é a nossa Festa, ninguém se sente estranho mesmo quando não se conhece. Muitos não o sendo de ficha e cartão, consideram-se também camaradas. Quase todos se tratam assim.
Alguns trazem t-shirts com foices e martelos, frases que nos fazem todo o sentido, caras e imagens de comunistas deste e de outros países, da nossa e de outras revoluções, mas com a mesma vontade no peito e convicção no punho erguido.
O magote nos pré-pagamentos adia o refresco prometido. A uma dúzia de metros fica o Algarve, lá trataremos do assunto, por agora os painéis políticos da organização coimbrã chamam-nos a atenção.
Cidade de saber, com forte tradição e dinâmica de luta, fica sublinhada a insubmissão dos estudantes perante o Processo de Bolonha e a mercantilização do ensino. Os trabalhadores e os agricultores também não ficam quietos e contam sempre com o apoio, solidariedade e capacidade de intervenção dos comunistas portugueses, ainda que as autoridades tomem medidas de forma a limitar a liberdade de expressão e actividade política no distrito.
«Nem o fascismo foi capaz!», recordamos e a ORC sublinha-nos tal evidência. No alinhamento político do espaço, para além de uma decoração onde as palavras e valores do PCP surgem em cores garridas, sublinha-se a resistência à ditadura. Ficamos a saber retalhos da história de O Alarme, primeiro órgão de imprensa do Partido, editado entre Julho e Agosto de 1921, do qual se conhecem três números. Em destaque, para mais, o sexagésimo aniversário do IV Congresso do PCP, reunião magna que decorreu na clandestinidade, na Lousã, e constitui um marco histórico na análise da situação social da época e na organização quer do colectivo comunista, quer das lutas do povo oprimido que caracterizaram toda a década de 40 e as que se lhe seguiram até à revolução dos cravos. Ai não há repressão que nos trave não senhor. Nem antes, nem agora, e os 85 anos do PCP e os 30 anos da Festa do Avante, assinalados em cada organização, não nos deixam equívocos.
Rumamos a Sul, que é como quem diz, acercamo-nos da terra onde para lá do mar se chega ao Norte de África. Trata-se obviamente do Algarve e a enchente obriga a uma paragem prolongada. Com gosto observamos a azáfama que vai dentro do restaurante. Olhares ansiosos cobiçam petiscos tipicamente algarvios. Camarão, sapateira, sopa de beldroegas, moreia frita, a escolha é demasiado difícil fazendo demorar a fila. «Daqui vemos o palco. Onde vamos almoçar?» - pergunto enquanto descubro entre os camaradas que trabalham para que nada falta e tudo corra bem, perdão, coma bem, uma mulher de aspecto compenetrado avaliando o arroz de marisco. Está malandrinho, parece garantir com um gesto afirmativo que faz com a cabeça. Mata-se a sede em três tragos e...olha os doces regionais. Quando o café assentar sobre o almoço havemos de cá voltar e matar a gula com um dom rodrigo para mim, um bolo de amêndoa para ti e um licor de alfarroba para ambos. As bonecas de Martinlongo dispostas no artesanato aprovam a decisão.
A ponte é uma passagem...
Pouco falta para as três da tarde, instante marcado para a abertura do 25 de Abril, o palco, e por baixo da ponte com o mesmo nome que decora o espaço da organização de Setúbal passa um rio humano. À entrada reparamos que num dos pilares desta ponte em miniatura está inscrito um grafitti que diz «evolução é passagem, não é portagem». De acordo. Lá dentro, sentados nas mesas redondas dispostas junto a cada um dos restaurantes, os visitantes dão descanso à fome. Há muito por onde escolher. Arroz de polvo ou de tamboril e choco frito em Setúbal, piano com arroz na Moita, massada de cherne em Almada, iguarias acompanhadas com uma garrafa de branco da Bacalhôa, ou um tinto de Palmela, depende do paladar e da capacidade de decisão. Tem tudo tão bom aspecto...
Certo é que também aqui se percebe o destaque dado à Rota dos Vinhos na Festa do Avante!, iniciativa saliente em quase todos os espaços e que confirmou, de facto, que beber vinho também é um acto de cultura.
Já os acordes do primeiro espectáculo no palco principal se ouviam na Quinta da Atalaia quando dobrámos a esquina com Viana do Castelo debaixo de olho.
Antes, porém, no bar da célula do PCP na AutoEuropa, o Faísca, nome do boletim do colectivo comunista naquela empresa, dois camaradas evocam tempos em que estavam na mesma organização do Partido. A distância de idades e o facto de agora desenvolverem actividade política em locais diferentes não são entraves à conversa calorosa, a brindes que saúdam o que os une e nos une a todos, à reafirmação da vitalidade do colectivo e do Partido no combate contra a precariedade laboral e em defesa do aparelho produtivo nos diversos sectores de actividade.
Em Setúbal, o reforço do PCP e o seu último Congresso, a defesa da segurança social e a rejeição da política de privatizações pontificavam como elementos políticos. Nas manhãs de Sábado e Domingo, às 10.00, dois debates compuseram o programa da organização, um subordinado ao tema «Situação social e problemas dos trabalhadores na Península de Setúbal», outro a respeito da «Água Pública». Esta última temática mereceu ainda um painel de tamanho enfático na alameda principal da Festa, ladeado a escassos metros por outro que afirmava o PCP como o Partido dos trabalhadores.
Ao nível local foram ainda trazidas à Festa reivindicações como a construção de um hospital público no Seixal, as preocupações relativas ao sector automóvel e ao que resta da construção naval na Lisnave, a actividade das autarquias comunistas no distrito e do Partido em cada concelho e o combate ao projecto de co-incineração na Arrábida.
Os pés não aguentam mais. Os grupos espalhados pelo terreno em saudável convívio prolongam a merenda até que o calor dê alguma trégua e fazem-nos lembrar que, afinal, com tal oferta gastronómica nos esquecemos de almoçar. Indecisões ou vontade de provar de tudo? Talvez um bocadinho das duas.
«Não é preciso levantar dinheiro? Óptimo, vamos lá». Os lenços garridos e as Chancas de Paredes de Coura dão-nos as boas vindas a Viana do Castelo. Arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima com enchidos da região, caldo verde e uma garrafa de Alvarinho que um dia não são dias e hoje é dia de Festa. Festejemos com os camaradas a anunciada abertura do novo Centro de Trabalho, uma vez que o antigo ficou tragicamente reduzido a cinzas. Em cinzas ficou também parte da mancha florestal no distrito, razão pela qual os comunistas de Viana trouxeram à Festa esta temática. Recompostos e mimados pela sempre afável recepção das gentes minhotas, obrigámos as pernas a mais um esforço, é que a volta ainda só vai a meio.
De Lisboa ao Porto num abraço
Em Lisboa a Feira da Ladra está ao rubro. Caixotes com roupa, rádios e bonecas, louça, objectos decorativos, livros com páginas descobertas de mão em mão, cada um decide. Quase ao lado, o pavilhão do coleccionador. Nas mesas dispostas em esplanada ficaram depositados os restos. Pratos com frango assado, pataniscas, salada de feijão frade, copinhos de ginja, e mais o que havia para comer, certamente, mas a afã militante não deixa refugos para trás.
Na Festa é preciso assegurar, desde o seu início até que finda com foguetes, inúmeras tarefas que passam despercebidas aos milhares de visitantes. A limpeza das mesas nos restaurantes e tasquinhas é uma delas, mas quando a madrugada toma o lugar da noite, o terreno também é passado a pente fino por centenas de camaradas para que o alvorecer mostre a Festa livre das inevitáveis toneladas de lixo. Depois há, entre outras, o apoio às delegações estrangeiras, o posto de saúde, a segurança do espaço e dos visitantes, a manutenção dos sistemas de abastecimento de água, gás, electricidade, os abastecimentos, o som, enfim, uma multiplicidade de tarefas complexas que só a abnegada vontade militante, desprendida das conveniências mesquinhas, é capaz de tornar simples e eficaz.
No espaço da organização de Lisboa, um painel que diz «Sim! é possível um PCP mais forte» sintetiza o valor dessa militância e mostra a necessidade de a reforçar o Partido da classe operária e de todos os trabalhadores que somos e queremos continuar a ser. Por isso aqui não ficaram esquecidos os milhares de postos de trabalho delapidados no distrito pela política de direita, a mesma que encerra unidades de saúde, aprova a Lei das Rendas negando o direito à habitação, pretende privatizar os serviços públicos. Contra tudo isto tem o PCP propostas concretas paulatinamente apresentadas na campanha «Portugal precisa, o PCP propõe», saliente em Lisboa, mas não só.
E o país ainda tem a Constituição da República, texto de importância estratégica e cujos artigos podíamos encontrar dispostos em painéis pela Festa, não raras vezes ladeados por poemas revolucionários.
Voltamos à alameda principal e somos surpreendidos por um grupo de caretos do Nordeste Transmontano. Vestidos de cores estridentes e munidos de chocalhos e guizos, fizeram a folia Festa acima, Festa abaixo, à «cuzada» aos visitantes que acompanhavam o cortejo. O careto tornámos a vê-lo, a horas tardias quando o convívio serrano nos puxou ao som da gaita-de-foles e dos tambores, copo de Favaios em riste, para o espaço da organização entre gente que ficou depois de saborear posta mirandesa e alheira da terra fria confeccionada com mestria pela organização de Bragança, logo ao lado, numa folia inimaginável.
Antes ainda desta festa dentro da Festa, em Santarém ficámos uma vez mais impressionados pela beleza da decoração do espaço no qual a reprodução dos silos quase tocava os céus da Atalaia e os adornos imitando uma herdade ribatejana aconchegavam o gosto a quem passava. Repousámos um pouco mais num pequeno espaço com um palco antes de visitarmos Viseu e retemperámos forças com o tema da exposição de Santarém: «Afirmar a esperança».
Em Viseu, entre artesanato local, chás de muitas virtudes, e o fumo que saía do fogareiro dourando o naco de vitela arouquesa da Serra do Montemuro - com uma garrafa do Dão à espera – debateram-se os temas mais candentes da região, ou não estivesse o stand dominado pela frase «Defender as escolas e os serviços públicos de saúde, combater a desertificação».
Mas mais logo é outra história, agora continuamos a subir em direcção à Praça da Paz, onde os lagos são piscinas que alentam quem está disposto a medidas radicais para combater o bafo quente que ainda perpassa a Festa ao cair da tarde.
As mantas garridas de Vila do Conde, as filigranas de Gondomar e os couros de Amarante são suficientemente atraentes para me desviarem da rota que pretendia tomar. «Vamos voltar atrás» - desafiam-me. «Podemos ver como estão as francesinhas». Pela boca morre o peixe, proposta aceite, vamos lá até ao Porto.
Deixamo-nos envolver pela pronúncia, ouvimos reafirmar de forma acesa que «não há câmara nem presidente que cale o PCP», saudamos camaradas e demoramos os abraços fraternos. A solidariedade aqui não é uma palavra vã, que o diga um dirigente venezuelano que por cá vai passar num debate aceitando o apoio dos portugueses para as batalhas que se aproximam no processo revolucionário bolivariano.
Os mais precavidos preparam-se para adquirir as senhas para o jantar. Orelheira e sopa de nabos em Gondomar, sardinhas em Matosinhos, bacalhau frito ao jeito maiato e as incontornáveis tripas à moda do Porto parecem ser os pratos que mais ordenam.
A Festa de um grande colectivo
«Olha como está bonita a nossa bandeira lá em cima». Os focos de luz dão-lhe um brilho especial que invade a Atalaia, mas é o amarelo da foice e do martelo puxando para eles a estrela da mesma cor que, sobre o pano rubro, lhe aumentam a dimensão empurrada pela conteúdo, significado e história cerzida ao largo de 85 anos de luta.
Baixamos os olhos e em frente voltamos a encontrar o símbolo da liberdade feito em ferro forjado. Um homem de chapéu preto, tez tingida por horas de trabalho no campo e corpo calejado pela jornada que já vai comprida, recebe o merecido descanso enquanto espera alguém. À sua volta, crianças sobem e descem a estrutura imponente, brincam nas suas dobras, fazem um objecto vivo da foice e do martelo que ali foi colocada para dar as boas vindas a quem entra pela Quinta da Princesa. Seguimos-lhes a corrida até Braga, atraídos como elas pelas peças de barro coloridas, os bonecos moldados por mãos de artesão, ali mesmo, na Festa, os brinquedos de Vila Verde e outras peças de artesanato.
«PCP: um passado de resistência, um presente de confiança, um futuro de liberdade», era a elocução escrita num pano que encimava a estrutura. Na exposição política, os comunistas bracarenses revelam que este ano já se inscreveram 138 novos militantes, muitos dos quais prontamente integrados na actividade regular do Partido, sinal de que o reforço do colectivo também está a passar por aqui.
«Em Braga a Festa continua», podia-se ler num segundo painel que interligava a Festa da Alegria com a homenagem a Álvaro Cunhal quando aludia as palavras do dirigente comunista naquela importante iniciativa. Partido de presente, como se podia ler na lona no topo do espaço, a organização de Braga deu ainda nota do trabalho e análise desenvolvida pelos comunistas em defesa do emprego no distrito e do aparelho produtivo na região, com particular destaque para os têxteis e a agricultura.
Com a barriga a pedir sustento e o relógio a pressionar, descemos até ao Alentejo, «terra de riqueza, de gente com firmeza, em luta sempre» - estava escrito. Os 30 anos da Festa, o trabalho autárquico dos eleitos nas listas do Partido e as ideias e projectos de desenvolvimento regional, sobretudo as questões da terra e da água, marcaram posição.
As casas brancas de telhados vermelhos dispunham no espaço um agradável largo coberto, onde os comensais se deliciavam com sabores e receitas da terra dos montados de sobreiro e das praias de areias quentes.
Os raianos oferecem-nos carne de porco à alentejana. Quem vive no Litoral tenta-nos o palato com uma caldeirada à moda de Sines, uma pinhoada de Alcácer e um bolo das rosas de Grândola. Comemos ensopado de borrego de Évora, todos ficam contentes, ninguém leva a mal e o vinho é de Reguengos, decidimos.
O burburinho aumenta de quando em quando, fruto da troca de opiniões. Outras vezes faz-se um silêncio, logo interrompido por um coro de considerações, ora fazendo ver que não é assim, é antes assado, ora para concordar dando palmadinhas assertivas nas costas. Somos camaradas, há confiança, gostamos de discutir, reflectir em conjunto e apurar conclusões. Gostamos de brincar e brindar a amizade desinteressada. Sabemos lutar e acreditamos que outros são igualmente válidos para integrar este combate, esta batalha cujo objectivo não é outro senão esmagar a exploração. Protestamos carregados de razão e trazemos sempre propostas e soluções. Queremos todos do nosso lado e se pouco pão houver, repartimos na mesma porque sacos vazios não se põem de pé, que é o mesmo que dizer que de seres humanos famintos e de joelhos está este mundo cheio e nós fartos até à exaustão. Somos comunistas e o brio incendeia-nos as faces quando entoamos em conjunto canções que são hinos a quem trabalha e ao seu papel histórico de transformação social.
Esta é a Festa que sendo nossa e do nosso Partido, há muito se enraizou nos corações de centenas de milhares de portugueses e de povos de outras paragens. Estamos determinados e não vamos desistir de mostrar a todos os que quiserem uma nesga do País do amanhã.
Pensando assim, o espaço parece-nos exíguo, demasiado apertado para conter no interior dos seus limites físicos tamanho génio criativo, tamanha torrente de vontade concretizada, essa mesma que, projectada para durar três dias, perdura no tempo e na memória de quem a faz e visita deixando vontade de repetir e ampliar a experiência. A Festa que sendo nossa, dos comunistas, do seu Partido e do jornal que lhe dá o nome, confirma em cada ano que se reedita ser também a de centenas de milhares de pessoas, anónimas ou nem por isso.
Lembramos expressões de esforço, suspiros que contrariaram o cansaço, máquinas em manobras, entulho, ferramentas, latas de tinta, projectos e ideias que sempre aceitam mais um contributo quando ele vem de uma mão amiga. Mil e uma imagens de sorrisos militantes, conversas e frases de estímulo rasgam-nos um sorriso impossível de conter. Os olhos arregalam-se ávidos de ver uma obra que tem sempre um bocadinho de cada um de nós, e o orgulho de ali estar e pertencer enche-nos o peito de ânimo. Conseguimos! Há trinta anos lançámo-nos na materialização do sonho e desde então oferecemos aos trabalhadores e ao povo uma maqueta do futuro. Não que tenha que ter aquelas torres que despontam, ou os tectos em lona berrante, ou o lago em cujas margens gerações se enlaçam na fruição da paisagem. Nada disso. Tão simplesmente porque a Festa traz à tona o melhor que reside em cada um de nós e em todos quando estamos juntos. Faz-nos sentir próximos, mais dispostos a partilhar o que há e acresce-nos a convicção nas razões que nos devolverão um futuro de liberdade. Apenas porque na Festa do Avante! quem semeia sabe que os frutos que colher são seus e do povo que por esta hora se precipita pelas duas portas principais de acesso ao recinto da Festa.
Vamos embora que o sol bafeja um calor tórrido e a «Carvalhesa» ecoa já nos altifalantes dando início à viagem.
Xadrez de sabores, identidade, futuro e luta
A manhã ainda agora começou e a rua que dista a entrada da Medideira até ao Palco 25 de Abril já é um carreiro de gente. Logo serão uma moldura humana que parece compacta, irrequieta, tornando difícil circular de região em região. Adiante veremos.
Caras estremunhadas sobem e descem, ora em passos vagarosos de observador, ora em ritmo apressado. «Tenho que ir para o meu turno» - explica um camarada que na noite anterior encontrámos deitado na relva a ouvir os compassos do Maestro Lopes Graça. «Encontramo-nos logo no stand de Castelo Branco e Guarda. Trincamos qualquer coisa e bebemos tinto do Côa» - promete.
Um visitante acabado de chegar à Quinta da Atalaia franze a testa fazendo contas à distância. Em Castelo Branco e na Guarda? - parece pensar atordoado pela imensidão à sua frente. Mais tarde acabará por perceber que nesta reordenação de regiões, a Festa trocou as voltas ao mapa. De Lisboa ao Porto basta atravessar uma rua. Açores, Viseu e Santarém circundam a Emigração e olham cá do alto a réplica da Ponte 25 de Abril que dá as boas vindas a quem entra em Setúbal a partir da maior sala de espectáculos do País.
Entre Braga e o Alentejo todos os dias há Arraial, e outras reordenações no xadrez de organizações comunistas onde podemos encontrar sabores, cultura, artesanato, identidade local, propostas de futuro e retratos da luta popular que continuamente procura arrancar Portugal do atraso ao qual nos condenam os governos e as políticas de direita.
Olhamos para o programa da Festa antevendo o jantar. Com vinho do Côa vão bem os maranhos, mas se por essa altura o estômago já pesar, ficamos pela sopa beirã. Uma coisa de cada vez, por agora vamos ao pequeno almoço. Tu vais ao café, eu vou aqui ao lado, a Aveiro.
«O proletariado na sua luta pelo poder não tem outra arma senão a organização» é a frase que nos recebe em fundo vermelho no pavilhão de Aveiro. No interior, painéis alusivos à actividade dos eleitos do PCP no distrito, à VI Assembleia de Organização e ao amplo movimento de assembleias de base que então decorreram, aos 85 anos do Partido e ao protesto pela reabilitação da Linha do Vouga garantem que a consigna de Lénine está a ser levada a sério.
Sentados à sombra apercebemo-nos da diferença de temperatura. Enquanto comemos as tarefas militantes não sossegam. Pão-de-ló de Arouca, moliceiros de ovos moles e uma morcela doce para depois. «Compra já a senha para o Leitão da Bairrada e ficas com a barrigada completa». Rimos, bebemos café, fumámos um cigarro, miramos mais uma vez a exposição política em redor e decidimos descer.
Em Leiria ficamos uns minutos deslumbrados com o vidro da Marinha Grande. Um conjunto de copos com uma garrafa de cristal expostos no stand são trespassados pelos raios solares. Se tivesse ginja de Alcobaça o reflexo era outro. A decoração política destaca a acção dos jovens comunistas e foca a importância da actividade vidreira, mas não esquece a luta dos pescadores e dos agricultores do distrito, sinal de que também em Leiria se prossegue a intervenção do PCP em defesa do aparelho produtivo nacional.
Contornamos o espaço e avistamos uma casita com tecto de palha. Não há que enganar, chegámos à Madeira. A fila em frente da pequena estrutura vai quase a meio da estrada. Aproximamo-nos para ver quais os principais atractivos oferecidos pela organização aos visitantes da Festa. Espetada de carne de vaca em pau de louro com milho frito, poncha, um bolo de mel e um pé de cabra de Câmara de Lobos para digestivo era uma refeição de lamber os beiços. Se a Festa em vez de três dias fosse uma semana...
Nas paredes do restaurante, voltada para o recinto de jogos da Festa está a história da «Revolta do Leite». Enquanto alguns jovens praticam desporto – só de os ver correr com o calor que faz ficamos cansados – damos uma vista de olhos pelos painéis. Em Junho de 1936, depois do fascismo ter acoitado as pretensões dos senhores da terra e ter decretado o monopólio do sector leiteiro, o povo ilhéu levantou-se e nem a repressão brutal ou a censura travaram de imediato as greves, os assaltos às instituições públicas e às fábricas levados a cabo pelos madeirenses. O PCP esteve na organização e promoção da revolta, esclarece-se, e para o provar está a história de dois dirigentes do Partido e uma reprodução da primeira página do Avante! da época onde tudo está escrito, preto no branco. 70 anos depois, o povo já se revoltava de novo contra o garrote de um ditador que mais cedo que tarde terá os dias de boçalidade terminados na Região Autónoma. Há quem faça por isso na Madeira, partimos confiantes.
«Daqui vemos o Palco»
São onze e meia e a Festa deita gente pelas costuras. Os corpos apressam-se determinados que estão em cumprir o objectivo pensado, definido por alto ou a régua e esquadro com o programa na mão. Depende. Ele há quem venha em excursão promovida pelo colectivo e quem chegue à Festa por meios próprios e por isso dependa apenas da sua capacidade de resistência aos quilómetros percorridos.
Famílias e grupos inteiros arrumam-se em cachos esgrimindo argumentos e projectos para mais um dia. Ninguém quer perder pitada. Há os espectáculos – uns querem ver uma coisa, outros outra. «Este ano está mais gente. O que trazes nesse saco?». Chá de Gorreana, ananás e queijo de São Jorge, escutamos depois de nos aproximarmos curiosos. Estiveram no espaço dedicado à estrutura partidária dos Açores, está visto, e lá encontraram, para além das guloseimas características das nove pérolas atlânticas, a afirmação do partido e da actividade dos comunistas nas instituições e nos combates de massas, os projectos e propostas para o arquipélago.
O queimor na garganta pede água. Eu prefiro beber uma cervejinha, vamos para junto do Palco 25 de Abril, lá cada um mata a sede como lhe apetecer. Chegamos a Coimbra e no terreno em frente milhares de pessoas, sobretudo jovens, aproveitam a pausa matinal nos espectáculos para retemperar forças. Muitos outros dão largas à alegria, à liberdade de se moverem por um espaço imenso sem constrangimentos, sem complexos, genuínos, reconhecendo-se na mesma condição dos demais que os acompanham ou dos muitos outros que consigo partilham três dias de razões cheias de futuro. Isto também é a nossa Festa, ninguém se sente estranho mesmo quando não se conhece. Muitos não o sendo de ficha e cartão, consideram-se também camaradas. Quase todos se tratam assim.
Alguns trazem t-shirts com foices e martelos, frases que nos fazem todo o sentido, caras e imagens de comunistas deste e de outros países, da nossa e de outras revoluções, mas com a mesma vontade no peito e convicção no punho erguido.
O magote nos pré-pagamentos adia o refresco prometido. A uma dúzia de metros fica o Algarve, lá trataremos do assunto, por agora os painéis políticos da organização coimbrã chamam-nos a atenção.
Cidade de saber, com forte tradição e dinâmica de luta, fica sublinhada a insubmissão dos estudantes perante o Processo de Bolonha e a mercantilização do ensino. Os trabalhadores e os agricultores também não ficam quietos e contam sempre com o apoio, solidariedade e capacidade de intervenção dos comunistas portugueses, ainda que as autoridades tomem medidas de forma a limitar a liberdade de expressão e actividade política no distrito.
«Nem o fascismo foi capaz!», recordamos e a ORC sublinha-nos tal evidência. No alinhamento político do espaço, para além de uma decoração onde as palavras e valores do PCP surgem em cores garridas, sublinha-se a resistência à ditadura. Ficamos a saber retalhos da história de O Alarme, primeiro órgão de imprensa do Partido, editado entre Julho e Agosto de 1921, do qual se conhecem três números. Em destaque, para mais, o sexagésimo aniversário do IV Congresso do PCP, reunião magna que decorreu na clandestinidade, na Lousã, e constitui um marco histórico na análise da situação social da época e na organização quer do colectivo comunista, quer das lutas do povo oprimido que caracterizaram toda a década de 40 e as que se lhe seguiram até à revolução dos cravos. Ai não há repressão que nos trave não senhor. Nem antes, nem agora, e os 85 anos do PCP e os 30 anos da Festa do Avante, assinalados em cada organização, não nos deixam equívocos.
Rumamos a Sul, que é como quem diz, acercamo-nos da terra onde para lá do mar se chega ao Norte de África. Trata-se obviamente do Algarve e a enchente obriga a uma paragem prolongada. Com gosto observamos a azáfama que vai dentro do restaurante. Olhares ansiosos cobiçam petiscos tipicamente algarvios. Camarão, sapateira, sopa de beldroegas, moreia frita, a escolha é demasiado difícil fazendo demorar a fila. «Daqui vemos o palco. Onde vamos almoçar?» - pergunto enquanto descubro entre os camaradas que trabalham para que nada falta e tudo corra bem, perdão, coma bem, uma mulher de aspecto compenetrado avaliando o arroz de marisco. Está malandrinho, parece garantir com um gesto afirmativo que faz com a cabeça. Mata-se a sede em três tragos e...olha os doces regionais. Quando o café assentar sobre o almoço havemos de cá voltar e matar a gula com um dom rodrigo para mim, um bolo de amêndoa para ti e um licor de alfarroba para ambos. As bonecas de Martinlongo dispostas no artesanato aprovam a decisão.
A ponte é uma passagem...
Pouco falta para as três da tarde, instante marcado para a abertura do 25 de Abril, o palco, e por baixo da ponte com o mesmo nome que decora o espaço da organização de Setúbal passa um rio humano. À entrada reparamos que num dos pilares desta ponte em miniatura está inscrito um grafitti que diz «evolução é passagem, não é portagem». De acordo. Lá dentro, sentados nas mesas redondas dispostas junto a cada um dos restaurantes, os visitantes dão descanso à fome. Há muito por onde escolher. Arroz de polvo ou de tamboril e choco frito em Setúbal, piano com arroz na Moita, massada de cherne em Almada, iguarias acompanhadas com uma garrafa de branco da Bacalhôa, ou um tinto de Palmela, depende do paladar e da capacidade de decisão. Tem tudo tão bom aspecto...
Certo é que também aqui se percebe o destaque dado à Rota dos Vinhos na Festa do Avante!, iniciativa saliente em quase todos os espaços e que confirmou, de facto, que beber vinho também é um acto de cultura.
Já os acordes do primeiro espectáculo no palco principal se ouviam na Quinta da Atalaia quando dobrámos a esquina com Viana do Castelo debaixo de olho.
Antes, porém, no bar da célula do PCP na AutoEuropa, o Faísca, nome do boletim do colectivo comunista naquela empresa, dois camaradas evocam tempos em que estavam na mesma organização do Partido. A distância de idades e o facto de agora desenvolverem actividade política em locais diferentes não são entraves à conversa calorosa, a brindes que saúdam o que os une e nos une a todos, à reafirmação da vitalidade do colectivo e do Partido no combate contra a precariedade laboral e em defesa do aparelho produtivo nos diversos sectores de actividade.
Em Setúbal, o reforço do PCP e o seu último Congresso, a defesa da segurança social e a rejeição da política de privatizações pontificavam como elementos políticos. Nas manhãs de Sábado e Domingo, às 10.00, dois debates compuseram o programa da organização, um subordinado ao tema «Situação social e problemas dos trabalhadores na Península de Setúbal», outro a respeito da «Água Pública». Esta última temática mereceu ainda um painel de tamanho enfático na alameda principal da Festa, ladeado a escassos metros por outro que afirmava o PCP como o Partido dos trabalhadores.
Ao nível local foram ainda trazidas à Festa reivindicações como a construção de um hospital público no Seixal, as preocupações relativas ao sector automóvel e ao que resta da construção naval na Lisnave, a actividade das autarquias comunistas no distrito e do Partido em cada concelho e o combate ao projecto de co-incineração na Arrábida.
Os pés não aguentam mais. Os grupos espalhados pelo terreno em saudável convívio prolongam a merenda até que o calor dê alguma trégua e fazem-nos lembrar que, afinal, com tal oferta gastronómica nos esquecemos de almoçar. Indecisões ou vontade de provar de tudo? Talvez um bocadinho das duas.
«Não é preciso levantar dinheiro? Óptimo, vamos lá». Os lenços garridos e as Chancas de Paredes de Coura dão-nos as boas vindas a Viana do Castelo. Arroz de sarrabulho à moda de Ponte de Lima com enchidos da região, caldo verde e uma garrafa de Alvarinho que um dia não são dias e hoje é dia de Festa. Festejemos com os camaradas a anunciada abertura do novo Centro de Trabalho, uma vez que o antigo ficou tragicamente reduzido a cinzas. Em cinzas ficou também parte da mancha florestal no distrito, razão pela qual os comunistas de Viana trouxeram à Festa esta temática. Recompostos e mimados pela sempre afável recepção das gentes minhotas, obrigámos as pernas a mais um esforço, é que a volta ainda só vai a meio.
De Lisboa ao Porto num abraço
Em Lisboa a Feira da Ladra está ao rubro. Caixotes com roupa, rádios e bonecas, louça, objectos decorativos, livros com páginas descobertas de mão em mão, cada um decide. Quase ao lado, o pavilhão do coleccionador. Nas mesas dispostas em esplanada ficaram depositados os restos. Pratos com frango assado, pataniscas, salada de feijão frade, copinhos de ginja, e mais o que havia para comer, certamente, mas a afã militante não deixa refugos para trás.
Na Festa é preciso assegurar, desde o seu início até que finda com foguetes, inúmeras tarefas que passam despercebidas aos milhares de visitantes. A limpeza das mesas nos restaurantes e tasquinhas é uma delas, mas quando a madrugada toma o lugar da noite, o terreno também é passado a pente fino por centenas de camaradas para que o alvorecer mostre a Festa livre das inevitáveis toneladas de lixo. Depois há, entre outras, o apoio às delegações estrangeiras, o posto de saúde, a segurança do espaço e dos visitantes, a manutenção dos sistemas de abastecimento de água, gás, electricidade, os abastecimentos, o som, enfim, uma multiplicidade de tarefas complexas que só a abnegada vontade militante, desprendida das conveniências mesquinhas, é capaz de tornar simples e eficaz.
No espaço da organização de Lisboa, um painel que diz «Sim! é possível um PCP mais forte» sintetiza o valor dessa militância e mostra a necessidade de a reforçar o Partido da classe operária e de todos os trabalhadores que somos e queremos continuar a ser. Por isso aqui não ficaram esquecidos os milhares de postos de trabalho delapidados no distrito pela política de direita, a mesma que encerra unidades de saúde, aprova a Lei das Rendas negando o direito à habitação, pretende privatizar os serviços públicos. Contra tudo isto tem o PCP propostas concretas paulatinamente apresentadas na campanha «Portugal precisa, o PCP propõe», saliente em Lisboa, mas não só.
E o país ainda tem a Constituição da República, texto de importância estratégica e cujos artigos podíamos encontrar dispostos em painéis pela Festa, não raras vezes ladeados por poemas revolucionários.
Voltamos à alameda principal e somos surpreendidos por um grupo de caretos do Nordeste Transmontano. Vestidos de cores estridentes e munidos de chocalhos e guizos, fizeram a folia Festa acima, Festa abaixo, à «cuzada» aos visitantes que acompanhavam o cortejo. O careto tornámos a vê-lo, a horas tardias quando o convívio serrano nos puxou ao som da gaita-de-foles e dos tambores, copo de Favaios em riste, para o espaço da organização entre gente que ficou depois de saborear posta mirandesa e alheira da terra fria confeccionada com mestria pela organização de Bragança, logo ao lado, numa folia inimaginável.
Antes ainda desta festa dentro da Festa, em Santarém ficámos uma vez mais impressionados pela beleza da decoração do espaço no qual a reprodução dos silos quase tocava os céus da Atalaia e os adornos imitando uma herdade ribatejana aconchegavam o gosto a quem passava. Repousámos um pouco mais num pequeno espaço com um palco antes de visitarmos Viseu e retemperámos forças com o tema da exposição de Santarém: «Afirmar a esperança».
Em Viseu, entre artesanato local, chás de muitas virtudes, e o fumo que saía do fogareiro dourando o naco de vitela arouquesa da Serra do Montemuro - com uma garrafa do Dão à espera – debateram-se os temas mais candentes da região, ou não estivesse o stand dominado pela frase «Defender as escolas e os serviços públicos de saúde, combater a desertificação».
Mas mais logo é outra história, agora continuamos a subir em direcção à Praça da Paz, onde os lagos são piscinas que alentam quem está disposto a medidas radicais para combater o bafo quente que ainda perpassa a Festa ao cair da tarde.
As mantas garridas de Vila do Conde, as filigranas de Gondomar e os couros de Amarante são suficientemente atraentes para me desviarem da rota que pretendia tomar. «Vamos voltar atrás» - desafiam-me. «Podemos ver como estão as francesinhas». Pela boca morre o peixe, proposta aceite, vamos lá até ao Porto.
Deixamo-nos envolver pela pronúncia, ouvimos reafirmar de forma acesa que «não há câmara nem presidente que cale o PCP», saudamos camaradas e demoramos os abraços fraternos. A solidariedade aqui não é uma palavra vã, que o diga um dirigente venezuelano que por cá vai passar num debate aceitando o apoio dos portugueses para as batalhas que se aproximam no processo revolucionário bolivariano.
Os mais precavidos preparam-se para adquirir as senhas para o jantar. Orelheira e sopa de nabos em Gondomar, sardinhas em Matosinhos, bacalhau frito ao jeito maiato e as incontornáveis tripas à moda do Porto parecem ser os pratos que mais ordenam.
A Festa de um grande colectivo
«Olha como está bonita a nossa bandeira lá em cima». Os focos de luz dão-lhe um brilho especial que invade a Atalaia, mas é o amarelo da foice e do martelo puxando para eles a estrela da mesma cor que, sobre o pano rubro, lhe aumentam a dimensão empurrada pela conteúdo, significado e história cerzida ao largo de 85 anos de luta.
Baixamos os olhos e em frente voltamos a encontrar o símbolo da liberdade feito em ferro forjado. Um homem de chapéu preto, tez tingida por horas de trabalho no campo e corpo calejado pela jornada que já vai comprida, recebe o merecido descanso enquanto espera alguém. À sua volta, crianças sobem e descem a estrutura imponente, brincam nas suas dobras, fazem um objecto vivo da foice e do martelo que ali foi colocada para dar as boas vindas a quem entra pela Quinta da Princesa. Seguimos-lhes a corrida até Braga, atraídos como elas pelas peças de barro coloridas, os bonecos moldados por mãos de artesão, ali mesmo, na Festa, os brinquedos de Vila Verde e outras peças de artesanato.
«PCP: um passado de resistência, um presente de confiança, um futuro de liberdade», era a elocução escrita num pano que encimava a estrutura. Na exposição política, os comunistas bracarenses revelam que este ano já se inscreveram 138 novos militantes, muitos dos quais prontamente integrados na actividade regular do Partido, sinal de que o reforço do colectivo também está a passar por aqui.
«Em Braga a Festa continua», podia-se ler num segundo painel que interligava a Festa da Alegria com a homenagem a Álvaro Cunhal quando aludia as palavras do dirigente comunista naquela importante iniciativa. Partido de presente, como se podia ler na lona no topo do espaço, a organização de Braga deu ainda nota do trabalho e análise desenvolvida pelos comunistas em defesa do emprego no distrito e do aparelho produtivo na região, com particular destaque para os têxteis e a agricultura.
Com a barriga a pedir sustento e o relógio a pressionar, descemos até ao Alentejo, «terra de riqueza, de gente com firmeza, em luta sempre» - estava escrito. Os 30 anos da Festa, o trabalho autárquico dos eleitos nas listas do Partido e as ideias e projectos de desenvolvimento regional, sobretudo as questões da terra e da água, marcaram posição.
As casas brancas de telhados vermelhos dispunham no espaço um agradável largo coberto, onde os comensais se deliciavam com sabores e receitas da terra dos montados de sobreiro e das praias de areias quentes.
Os raianos oferecem-nos carne de porco à alentejana. Quem vive no Litoral tenta-nos o palato com uma caldeirada à moda de Sines, uma pinhoada de Alcácer e um bolo das rosas de Grândola. Comemos ensopado de borrego de Évora, todos ficam contentes, ninguém leva a mal e o vinho é de Reguengos, decidimos.
O burburinho aumenta de quando em quando, fruto da troca de opiniões. Outras vezes faz-se um silêncio, logo interrompido por um coro de considerações, ora fazendo ver que não é assim, é antes assado, ora para concordar dando palmadinhas assertivas nas costas. Somos camaradas, há confiança, gostamos de discutir, reflectir em conjunto e apurar conclusões. Gostamos de brincar e brindar a amizade desinteressada. Sabemos lutar e acreditamos que outros são igualmente válidos para integrar este combate, esta batalha cujo objectivo não é outro senão esmagar a exploração. Protestamos carregados de razão e trazemos sempre propostas e soluções. Queremos todos do nosso lado e se pouco pão houver, repartimos na mesma porque sacos vazios não se põem de pé, que é o mesmo que dizer que de seres humanos famintos e de joelhos está este mundo cheio e nós fartos até à exaustão. Somos comunistas e o brio incendeia-nos as faces quando entoamos em conjunto canções que são hinos a quem trabalha e ao seu papel histórico de transformação social.
Esta é a Festa que sendo nossa e do nosso Partido, há muito se enraizou nos corações de centenas de milhares de portugueses e de povos de outras paragens. Estamos determinados e não vamos desistir de mostrar a todos os que quiserem uma nesga do País do amanhã.